terça-feira, julho 12, 2005

àquele que permanece

Algum gosto de terra pela manhã.
Espessura primeira do tempo: a comida era forte, virginalmente rude.
Notoriamente compulsivos, aqueles dias se arrastavam pelas quinas da casa vazia. O tempo retorcido, despedaçando as paredes. Pela janela vinha um vento frio, perscrutando o cheiro eterno da ausência. Páginas melancólicas que se desdobravam num impulso tênue e contínuo, como uma música sempre ao longe.
Os olhos semicerrados. Tempo de silêncios, de palavras ensimesmadas e duvidosas. O espaço ensaiava intensas geometrias aéreas. Como faz frio...! Não havia de levantar-se, mesmo que disso morresse o poema, ou congelasse ali mesmo. Os olhos mantinham-se resignadamente doces.
Agora eram os dias revisitados em negativo, no recorte idêntico de outrora. Mãos esquecidas, lábios longamente ressecados. Drama do peso de toda presença: o sol chegava bissexto.
E não é que por um instante tudo fez sentido? E logo esse instante se foi...

sexta-feira, julho 08, 2005

retorno

Foi quando se percebeu acordado para um lado de dentro. O tempo era agora se enlear nos revolvimentos preguiçosos do espírito, deixar-se levar pela brisa azulada dos dias montanhosos. Alva luminosidade de tardes em cismar sozinho, por uma leveza de conquista árida e suada. As lágrimas que ainda insistiam em não secar dentro de si quiçá um dia tornariam tudo aquilo mais simples em um outro lugar. O tempo era agora o próximo passo.
O copo vazio, o limite linear do olhar sobre o mundo, como uma fotografia em branco.
– Preciso caminhar um pouco, procurar significados. Ir a lugares conhecidos. Preciso de um pouco de frio.
O copo violentamente vazio. Olhos perdidos num ponto sem foco. O desfoque traz à memória momentos de amor e de sorrisos despretensiosos. Foram-se, ao menos por agora, os dias em que se buscava vida por entre as pedras. E assim, de repente, tudo se esvai e volta à tona a terrível eternidade do momento. Os cheiros estão longe, guardados para algum dia. Também as palavras.
Já era hora de levantar-se. A terra era forte e suculenta, flores murmuravam nuvens. Tudo irritantemente belo, largo engano para os sentidos. Tudo ocultava uma aguda ausência de perspectiva daqueles todos em volta, cada um em suas pequenas aflições e guerras interiores. Cada um curtindo em pele e sal a sua própria angústia, seus próprios jardins infrutíferos. Conteve-se por um instante. Sim, distâncias o atormentavam, mas não havia para onde fugir. Já era hora de levantar-se.
Hesitou. Quando a dor se torna uma sensação contínua, o corpo se acostuma, o vício se enraíza pelos abismos da carne. E por mais que não percebesse, ou talvez não admitisse, a dor fora até então como que uma necessidade, uma substância que causava abstinências naquela alma inquieta. Lembrava-se agora, entretanto, e não sem certa alegria, de momentos vagos que vivera naquele mesmo lugar. Uma alegria comedida, incerta, que esboçava nos cantos do rosto um sorriso rude e envelhecido. Aquele lugar possuía memória. E era essa memória, de um si mesmo que hoje já não era mais, que o impressionava. A efemeridade dos si mesmos, a inconstância – ou inconsistência – das épocas. Sempre as mesmas dúvidas. Nunca as mesmas dúvidas. Não mais cabiam cobranças ou grandes expectativas. O momento exalava silêncios em uníssono. Respostas não havia, mas as imagens que surgiam eram doces e confortantes o suficiente. Ao sentimento de autocomiseração, opunha-se agora aquele raro êxtase, aquele calafrio de memórias de cores deliciosamente estouradas, estacionadas num lugar seguro da história.
A tarde escorria pelo horizonte e dava lugar à noite com lentidão, espetáculo de luzes. Mas não, já era hora de levantar-se.
Foi quando adormeceu.

segunda-feira, julho 04, 2005

E veio o momento em que a porta se fechou. As cidade as luzes amarelavam olhos, a vida lenta escorria, um zumbido. Nesses instantes de gosto envelhecido, tantas palavras esquecidas de si próprias, amargamente a se tornar ruídos, o tempo não pôde esperar por nós. Chorei. Nas pedras brotaram estilhaços do poema triste, as cores confusas, a porta se fecha com um sorriso de amor perdido. O dia a ventar melodias de compaixão, e pelas esquinas as flores eram manchas no asfalto rude. Quando na cidade passavam crianças chorando, o chão trincava de frio e remorso. Havia arrependimento no olhar das crianças, sofrimento doce de engolir lágrimas derramadas, a dor era vício das incoerências da alma.

Linda fragilidade infantil da pétala, os olhos nunca mornos. Distâncias várias que latejam durante o sono. As bocas irmãs, a esperar o reencontro, solenemente, tornam-se palavra, lapidam-se, reverberam no tempo a recriar o caos, tem-se à frente os olhos cansados, os olhos nunca mortos. A porta está entreaberta.