quinta-feira, novembro 23, 2006

cartas para mim mesmo, IV, ou reflexo da música (trecho)

vieram nuvens, as mesmas de sempre, ou quase. veio a chuva.
mais uma vez começo o já conhecido e gasto ciclo de embriagar-me em memórias, de suscitar dúvidas, de tanto e desenfreadamente falar e pensar (nessa ordem), que acabo por construir tantos possíveis quanto parece ser possível. construir, mas não num sentido de acabamento, de detimento e perfeccionismo: é mais uma vez a urgência de minhas horas que me assalta como um tijolo nas costas, aquele tão jovem e já esgarçado despedaço de maturidade que é tudo o que há em mim de maturidade. minha para sempre (para sempre?) incompleta e insaciável fome de palavrear o mundo, de recombinar as vozes que trafegam dentro de mim num outro devaneio qualquer que insisto crer conhecimento. sempre a mesma questão, um oceano de questões.
há também uma obsessiva necessidade de auto-análise, que também me impele a um monólogo sempre tautológico, insistente. e são tantas as vezes em que me surpreendo, naquele momento epifânico da consciência de algo monstruoso e desesperador escondido por sob as vestes de alguma realidade, numa tentativa que se debate contra si mesma, como num movimento involuntário do pensamento às avessas que paradoxalmente luta contra um impulso inelutável. é a dor das incertezas, das insuficiências que nos atravessam por cada segundo de nossa existência, o último dos caminhos ou a primeira das fraquezas, diria um livro que eu jamais teria escrito, uma canção qualquer por entre as janelas de uma única rua. ponho-me a compartilhar canções com quem não posso, ou não devo, na obscenidade velada de um íntimo desfeito de súbito. estranha sensação que arrebenta a clausura dos nomes, algo que caminha entre os já íntimos momentos de dor e de prazer, mas com uma discrição tão consistente que torna impossível qualquer atitude prudente, ou que o valha. prudência ou dúvida, é a cegueira de algo profundamente entranhado nas carnes, contra o qual se tenta mas talvez não se possa lutar, essa mesma vontade que não deixa de ser forte por ser tímida, constante como uma goteira. é a latência, o afã da semente, a fúria do ovo em vias de luz. será mesmo a memória fogo? será mesmo todo esse exercício, ou melhor, essa tentativa de exorcismo, um caminho de mão única, com uma só luz ao fim? haverá mesmo um fim? escolhas, tantas, vozes em idiomas que não nos dizem verbos conhecidos, mas cujos sotaques nos tocam ao fundo da nuca e nos arrepiam toda a superfície. ponho-me a discutir comigo mesmo, a escrever sem saber onde chegar mas simplesmente para tentar vislumbrar algum caminho conhecido e que traga conforto. têm me sido, talvez, por demais duros os trajetos a que tenho me proposto. talvez sinta falta daquele "pouco de frio", de uma dimensão que me traga uma vertigem corpórea, simplesmente. afetos que me toquem na pele. tantas as vozes que se embaralham por sobre minha música, e quaisquer que sejam as imagens que busco no mundo ainda há uma arrogante e insistente recorrência de um mesmo olhar, de cheiros conhecidos no íntimo que não se deixam tragar facilmente pelo vento. "deus, quanto desacato à subversão dos poetas!", diriam amigos em outras épocas. submersão em oceano único, voz minha que só faço ouvir a poucos... nossos dramas, tramas infindáveis de pedaços de sonho e cor emaranhados em pensamento e carne, e toda essa matéria invisível que um dia nos deu o céu e hoje nos leva a lugares tão escuros e frios... é uma voz distante que nos chama a viver, minha amiga. são as eternas danças de cada trajeto, bailado lúdico de nossas aflições, que teimam em não ceder aos acessos que vêm de nossa alma racional. penso em ti como penso numa pedra, numa canção, compartilhando no íntimo uma vivência de tempo que é ao mesmo tempo própria da eternidade das montanhas e da efemeridade dos blocos de sons, sendo prisioneira dessa vivência como somos prisioneiros de nossa fala. de nossa música, da música do mundo que nos constitui.
juraria que não distingo em meu íntimo o realmente sentido e o profundamente fabulado; juraria até mesmo que talvez não mais saberia cantar aquelas canções, de um tempo sobre o qual me debruço hoje com nostalgia e alguma dor. é possível, e nisso me empenho em acreditar, que o atual estado de minha alma (e também da tua, de certa forma), seja fruto desse interstício cruel entre as épocas, do espaço vazio que há entre dois corpos justapostos no tempo, um certo tempo, um certo lugar. eloquência e força dessa engenhosa geometria dos acasos que nos fez viver e conviver com uns, e não outros.
juraria que posso chorar, mas evito fazê-lo pela descrença no poder de minha dor. há que se ter uma crença em algo que olhe por nós, pequenas partículas de tempo que somos: que venham bons ventos, é o que desejo e pelo que rezo.