quinta-feira, abril 05, 2007

pelo contínuo do passo, o aberto:
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coisas rasgadas

Nove canções.



Existe agora em mim uma canção que pulsa.
A dúvida, e a dor de sabê-la, como a certeza do ser inevitável do tempo,
do ritmo básico da existência.

Encontrei por esses dias fotos rasgadas.
Lugares vazios, vestígios desordenados, sem nome.


(Os nomes, as coisas, sua ordem nos dias...)


- Estou sujo.
Atravessado por todas as ruas da cidade,
as inacessíveis, com o mistério das coisas por baixo,
mesmo quando em casa, enclausurado e vago,
quando profundamente angustiado por uma pequena coceira nas mãos.

Ando pela cidade. Choro
debaixo da luz dos postes nas folhas das árvores,
infinita.

(Quis tirar fotografias, mas a vontade não foi suficiente.)

Encontrei por essas horas poemas rasgados:
- A força invencível do mundo...
- Cada palavra...
Como a explosão de um possível dilacerado:
o ódio, ou o descaso, ou o tempo,
ou nada.
- Apenas nove canções...
- Faço-me passar por prudente...

(Os sobrenomes, e de novo as coisas...)

Existe agora em mim a dor
mínima e infinita
como a daquela cantiga de amor ao vento que dizia
da imensidão cósmica das células,
dizia, dizia...


Existo.
Agora em mim, a dúvida. Pulsa a canção infinita e dolorosa da vida,
infinita, dolorosa.
Não me sei. Não me nomeio sem hesitar.
- De minha natureza...

Não me sou, ou quase isso.

Imagino o plano infinito do tempo, e sempre vem a canção.
Pelas ruas, coisas vagas e perdidas,
apenas o alento melancólico do verde das folhas embaixo dos postes.
Digo: a imagem mais certa de minha cidade.

Quis chorar,
trazer à voz as incertezas, cheguei a querer o conforto covarde de um estado eterno de suspensão, quis chorar em silêncio, com as mãos:
- Sou um homem de belezas efêmeras.
- Sou um homem de dúvidas e nós na garganta.
- Não me sinto forte para suportar os assassinatos do percurso.
- Já quis cantar a canção, imensamente, hoje não me lembro mais.
- Como um lagarto a quem cortam o rabo.
- Os trajetos perdidos, para sempre possíveis dilacerados:
- Em seu lugar...
- Não se engane:


(Quais seriam as nove canções?)


- Sou um homem de imagens gastas.
- O que da janela vê a mesma tabacaria.
- Descobri, enfim, que...
- Como foi mesmo que começou?



Um vômito essencial e substantivo,
urgente
na dor da madrugada em claro.
Meu sangue e minha culpa, por inteiro.
Por inteiro.

do amor e do som

Quis uma mulher que me amasse na comunhão silenciosa dos corpos, antes da fala, dentro do som. Sabemos que o amor é o que nos põe loucos. Existimos como o verbo incerto, no início. Insistimos na música, mas outra, agora, para que as flores sejam ainda mais flores, dessa vez. Eis o tempo que se desdobra, trôpego: silêncio. Se ainda ontem quis me exaurir pela escrita, é chegado o momento do caminho, a última cor a seguir. Quis a sacralização de uma dor entre mil outras que virão pelo espaço, é possível? Talvez a clausura dos nomes nos sufoque mais uma vez; esqueça o que lhe disse, não importa. É preciso dar conta do silêncio. É preciso saber ouvir a música. Um acorde é como um vestido para o tempo, sabe? Conseguiremos perceber a pré-disposição para as imagens que carregamos no íntimo? Insistimos na música, mais uma vez, como em qualquer motivo abstrato. Que dizer dessa habilidade incompreensível? É o vício. Se nos incomoda a privação, paciência. Deve-se aprender com a violência. Que dizer das anotações de ontem à noite? Diziam do som: é uma das características mais reais do mundo. Sua presença comunica a própria essência de sua sensação pela forma que adquire no tempo. Como se houvesse formas absolutas, traços compositivos à espera de organização, nosso corpo moldando essa absorção. Percebe? Não é o amor. É o som que nos põe loucos. É o vício.
meu amor, a vitória do mundo se contradiz às nossas esperanças, não podemos mais seguir pelo instante inalcançável do tempo futuro, sempre, é certo que o mundo não se mede com estes olhos, o corpo não se mede com sintaxe, talvez haja em nós mais verdade que se possa suportar, as insuficiências, as palavras destituídas de sentido, é duro fugir, talvez o percurso nos exija assassinatos, o mundo se coloca em frente aos nossos corpos, essa memória compartilhada, a imensa memória, carregada de temperaturas, quantas vezes não quisemos morrer às portas um do outro, de frio, chorando pelo abraço indispensável desse mundo quente que foi o nosso, essa redoma de passos incertos e sonos feitos de nuvens, mas a dor é que um dia te verei noutra vida, longe da nossa manta rosa, com outras cortinas e cheiros, esse teu mundo será violentamente outro e em mim morrerá abruptamente um pedaço da carne, seja outra a passagem dos nossos corações no instante em que não se realizarem em nós as antigas promessas de música, nunca foi impossível se debater contra as vozes da morte, eu sei e ainda sinto a dúvida, eu sei excessivamente dos limites da porta da casa; mais uma vez minha vida de longe, meus passos às vezes dolorosos, se alguns dos novos trajetos recuperassem as migalhas e a vontade de deixar ser plantado no eterno novo lugar, inesgotável na memória de nossa co-presença; seremos outros, nos olharemos inevitavelmente mais uma vez, tentando sufocar o calor do corpo por tantos instantes em que o tempo nos incrustou pequenas pedras, o que há de se fazer, meu amor, senão aguardar o juízo da vida dizendo sobre o que um dia cremos ser a verdade para a dor dessa loucura.


reescrita / plágio

quinta-feira, novembro 23, 2006

cartas para mim mesmo, IV, ou reflexo da música (trecho)

vieram nuvens, as mesmas de sempre, ou quase. veio a chuva.
mais uma vez começo o já conhecido e gasto ciclo de embriagar-me em memórias, de suscitar dúvidas, de tanto e desenfreadamente falar e pensar (nessa ordem), que acabo por construir tantos possíveis quanto parece ser possível. construir, mas não num sentido de acabamento, de detimento e perfeccionismo: é mais uma vez a urgência de minhas horas que me assalta como um tijolo nas costas, aquele tão jovem e já esgarçado despedaço de maturidade que é tudo o que há em mim de maturidade. minha para sempre (para sempre?) incompleta e insaciável fome de palavrear o mundo, de recombinar as vozes que trafegam dentro de mim num outro devaneio qualquer que insisto crer conhecimento. sempre a mesma questão, um oceano de questões.
há também uma obsessiva necessidade de auto-análise, que também me impele a um monólogo sempre tautológico, insistente. e são tantas as vezes em que me surpreendo, naquele momento epifânico da consciência de algo monstruoso e desesperador escondido por sob as vestes de alguma realidade, numa tentativa que se debate contra si mesma, como num movimento involuntário do pensamento às avessas que paradoxalmente luta contra um impulso inelutável. é a dor das incertezas, das insuficiências que nos atravessam por cada segundo de nossa existência, o último dos caminhos ou a primeira das fraquezas, diria um livro que eu jamais teria escrito, uma canção qualquer por entre as janelas de uma única rua. ponho-me a compartilhar canções com quem não posso, ou não devo, na obscenidade velada de um íntimo desfeito de súbito. estranha sensação que arrebenta a clausura dos nomes, algo que caminha entre os já íntimos momentos de dor e de prazer, mas com uma discrição tão consistente que torna impossível qualquer atitude prudente, ou que o valha. prudência ou dúvida, é a cegueira de algo profundamente entranhado nas carnes, contra o qual se tenta mas talvez não se possa lutar, essa mesma vontade que não deixa de ser forte por ser tímida, constante como uma goteira. é a latência, o afã da semente, a fúria do ovo em vias de luz. será mesmo a memória fogo? será mesmo todo esse exercício, ou melhor, essa tentativa de exorcismo, um caminho de mão única, com uma só luz ao fim? haverá mesmo um fim? escolhas, tantas, vozes em idiomas que não nos dizem verbos conhecidos, mas cujos sotaques nos tocam ao fundo da nuca e nos arrepiam toda a superfície. ponho-me a discutir comigo mesmo, a escrever sem saber onde chegar mas simplesmente para tentar vislumbrar algum caminho conhecido e que traga conforto. têm me sido, talvez, por demais duros os trajetos a que tenho me proposto. talvez sinta falta daquele "pouco de frio", de uma dimensão que me traga uma vertigem corpórea, simplesmente. afetos que me toquem na pele. tantas as vozes que se embaralham por sobre minha música, e quaisquer que sejam as imagens que busco no mundo ainda há uma arrogante e insistente recorrência de um mesmo olhar, de cheiros conhecidos no íntimo que não se deixam tragar facilmente pelo vento. "deus, quanto desacato à subversão dos poetas!", diriam amigos em outras épocas. submersão em oceano único, voz minha que só faço ouvir a poucos... nossos dramas, tramas infindáveis de pedaços de sonho e cor emaranhados em pensamento e carne, e toda essa matéria invisível que um dia nos deu o céu e hoje nos leva a lugares tão escuros e frios... é uma voz distante que nos chama a viver, minha amiga. são as eternas danças de cada trajeto, bailado lúdico de nossas aflições, que teimam em não ceder aos acessos que vêm de nossa alma racional. penso em ti como penso numa pedra, numa canção, compartilhando no íntimo uma vivência de tempo que é ao mesmo tempo própria da eternidade das montanhas e da efemeridade dos blocos de sons, sendo prisioneira dessa vivência como somos prisioneiros de nossa fala. de nossa música, da música do mundo que nos constitui.
juraria que não distingo em meu íntimo o realmente sentido e o profundamente fabulado; juraria até mesmo que talvez não mais saberia cantar aquelas canções, de um tempo sobre o qual me debruço hoje com nostalgia e alguma dor. é possível, e nisso me empenho em acreditar, que o atual estado de minha alma (e também da tua, de certa forma), seja fruto desse interstício cruel entre as épocas, do espaço vazio que há entre dois corpos justapostos no tempo, um certo tempo, um certo lugar. eloquência e força dessa engenhosa geometria dos acasos que nos fez viver e conviver com uns, e não outros.
juraria que posso chorar, mas evito fazê-lo pela descrença no poder de minha dor. há que se ter uma crença em algo que olhe por nós, pequenas partículas de tempo que somos: que venham bons ventos, é o que desejo e pelo que rezo.

sexta-feira, outubro 20, 2006

Uma arquitetura, não a dos ângulos concretos mas a dos galhos secos contra o céu nublado em cinza, sua delicada geometria e uma perspectiva dos trajetos que nos circundam. Caminhar, só. Um hiato, as janelas. Tempo em si. A alma, o corpo, os dias. Como nos encontros que forjamos, ou no sono da cidade. Caminhar, e os sons. As vidas alheias transcorrendo ao acaso. Um objeto perdido pelo tempo. Uma pergunta voando pela esquina. Um respiro qualquer, o espaço em mim.

Seria belo se o silêncio invadisse a cidade.

quinta-feira, setembro 21, 2006

pois que mais uma vez vem uma escrita vomitada, de um outro momento ou quase, escritura para sempre inconclusa de vaguidões entrelaçadas com a música do mundo, o tempo, a medida exata das vozes estilhaçadas, ou a noite, poema incompleto incandescente, talvez motivo de uma única nota, porém. ou as horas, a música entrelaçada com suas próprias imagens, o vômito permanente e compulsivo de algo que não consegue calar-se, de um vício como os pontos de fuga de uma eternidade de espelhos. a escrita atropelada por qualquer movimento na espessura primeira do espaço, ou a última.

terça-feira, agosto 29, 2006

o último dos violetas

Uma mulher com quem comer e dormir
E que seja a própria sensação da vida
respirada numa explosão do último dos violetas.
Corpórea, e materializada no instante do abismo entre os corpos
e que venha ser o outro lado de um silêncio pontuado de música,
uma mulher com quem beber e falar, longamente,
com quem riscar as palavras do poema véspera de um tempo planificado,
com quem ignorar o mundo, e sê-lo, ao mesmo tempo,
na imensidão cósmica das células.
Uma mulher com quem compartilhar o frio de uma praça,
onde a noite é toda cinema,
e que explique a vida pela imagem de uma árvore florida.
Uma mulher com quem viver em eterno adoecer-se e curar-se das dores do mundo,
com quem experimentar o vento e o cansaço como deuses,
e de quem nada esperar a não ser a presença incerta
e com quem desnudar cheiros, e sorver tardes, e caminhar
e que talvez seja uma mulher-instante, apenas.


E que talvez seja uma mulher-instante, apenas.

terça-feira, agosto 22, 2006

sobre título e auto-crítica

pois que um ciclo para sempre inconcluso, o poema, foram as dores uterinas, aquelas manhãs de um mês qualquer há alguns anos atrás, foram as cores de uma noite anônima, o poema regurgitado infinitamente, foram os cheiros de umas poucas ruas, algumas flores, uma lucidez destrutiva, talvez?, imenso poema de todas as vozes do mundo.

sexta-feira, agosto 18, 2006

a rua o homem e a ciranda dos nomes

cenário: homem estendido sobre a cidade






deitar amor sobre a cidade,
como a uma mulher jovem,
em fôlego amor entrecortado transbordado
nos poros, olhos,
na volúpia do gesto,
no sopro tênue das peles,
a cidade é uma mulher jovem, a quem amo
- a cidade, eu, um corpo
amor sobre a cidade,
como à própria irmã, fruto igual, prolongamento
da matéria uterina
da matéria dúbia
de dor primeira e conforto último, a cidade
descolamento de tempo
- a cidade, o corpo
deitar à cidade,
como à própria mãe, à carne expelida, os nódulos originais,
volumes superfícies absolutas de mesma cor
- eu mesmo
deitasse a ela, como à própria filha,
invenção obsessiva, temperatura compartilhada, extensão,
potência violenta,
descontrole de que o amor não dá conta


(a cidade vive, para além de mim)


- um só corpo

sobre a cidade, deitamo-nos, há amor
como ao seio de uma mulher,
da própria irmã,
da própria mãe,
da própria filha;
- um só espírito.